João
dormitava no ônibus quando, bruscamente, uma senhora pediu licença para passar.
Ele encolheu-se no assento e cedeu passagem, mas o chacoalhar do veículo jogou
a robusta mulher sobre o corpo franzino de João. Ela não se desculpou e
apressou-se para a porta, depois saltou na parada em que havia solicitado. João
ocupou o assento da senhora, recostou-se à janela e cochilou novamente.
Uma fina
voz infantil fez João despertar: era uma garotinha vendendo doces. Ela contou
sobre a situação financeira de sua família e mostrou o que trazia consigo para
vender. Os passageiros logo procuraram no fundo dos bolsos alguns centavos para
ajudar a garota, João não foi exceção. Ao aproximar-se dele, a garotinha, com
seus cabelos assanhados e roupas surradas, sorriu-lhe afetuosamente ao ver que
ele estendia a mão com algumas moedas.
- Qual o
senhor quer? – perguntou a menina. - Tem de menta, morango, acerola e
maracujá...
João
escolheu o doce de sua preferência e a garota agradeceu. Fez o mesmo com todos
os que compraram dela. Ouviu-se abrir a porta e a garota saltar do ônibus,
agradecendo ao motorista por lhe ter permitido a venda dos doces. João fitou
pela janela aquele rosto tristonho, sujo, sentiu pena da garota. Imaginou sua
longa jornada todos os dias, de manhã cedo até o final da tarde, por sob aquele
sol escaldante, pés metidos em chinelos velhos e remendados. Nada poderia ser
mais triste.
A viagem
continuava, o ônibus avançava, parava em quase todos os pontos; desciam cinco,
subiam dez; e João dormia tal qual uma criança, despertando a cada vez que o
veículo dava uma freada brusca ou passava por uma lombada; e voltava a dormir.
Recuperar o sono da noite mal dormida, eis o que tentava fazer.
O grito
enfurecido de um homem, seguido de uma forte batida na porta do ônibus,
despertaram João novamente: o motorista não parara onde devia. O homem desceu
na parada seguinte aos berros, pronunciando o maior número de insultos
possível. João não voltou a dormir, consultou o relógio e pôs-se a observar as
pessoas no interior do ônibus. Ele tentava penetrar suas mentes, saber cada
detalhe de suas vidas, nada poderia escapar.
A
primeira pessoa que viu foi uma robusta senhora, sentada na fileira oposta,
mas, diferentemente da outra que lhe esmagara dantes, essa parecia mais
simpática. Viu em seus olhos a imagem de uma mulher trabalhadora, que sofria
amiúde agressões do marido alcoólatra e tinha de inventar desculpas que
justificassem os hematomas. Seus filhos deveriam testemunhar seus sofrimentos e
com ela dividir a dor, eram a fonte de sua força.
João
voltou-se para trás, um homem persignava-se segurando um terço; fixou o olhar
nele e tentou decifrar sua história. Tudo se lhe revelou num instante: o homem
era um batalhador, sempre honrado e honesto, aprendera a viver da maneira mais
difícil, mas nunca seguira o mau caminho. Um homem exemplar.
Havia, no
último banco, uma pessoa que parecia esconder-se. João observou os cabelos
grisalhos e a longa barba e supôs se tratar de um filósofo, melancólico por não
encontrar as respostas aos seus questionamentos. Sua tez morena revelava várias
horas de exposição ao sol, provavelmente não passava muito tempo em casa. João
via um homem sábio, erudito, prendado, mas incapaz de responder as questões
relativas à sua existência e à complexidade do universo.
Depois de
se enfadar profundamente com o que estava fazendo, João aconchegou-se novamente
em seu travesseiro de vidro e já não queria ler o pensamento das pessoas,
simplesmente sonhava a medida que o ônibus avançava. Suas impressões foram
equivocadas afinal: a grande senhora que supôs apanhar do marido alcoólatra
vivia, na verdade, uma vida solitária e improdutiva, era viúva e dependia da
pensão do falecido, não tinha filhos; o homem virtuoso e honrado que imaginara,
rezava pedindo proteção nos próximos roubos; e o velho homem barbudo, filósofo
que nada, era um mendigo que havia entrado sem pagar e tentava não ser visto.
Renan Almeida, junho de 2012.