domingo, 24 de março de 2013

Poema sem título (por Rômulo Costa)


"Há, no interior de minha jovem carne fria,
um nobre ancião que devora o fruto quente da vida.
Que de mim conhece e surrupia
as paixões, o sonho, as ilusões e o bálsamo da ferida.

Ele, o velho, me guia sem guiar
dos recantos trevosos da Terra
aos encantos sublimes do ar,
desde a epigênese do canto das harpias
à geração monofônica do celular

Nele, senhores, repousa a razão
que sob nossas cabeças rasteja de desolação, descontentamento...

Ele, senhores, é o Sentimento!"

Rômulo Costa, 17 de junho de 2012.




quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O juízo

“O primeiro anjo tocou. Saraiva e fogo, misturados com sangue, foram lançados à terra; e queimou-se uma terça parte da terra, uma terça parte das árvores e toda erva verde.”
Apocalipse 8:7

Eu ouvi reclamações de mil mendigos
Senti seu cheiro de vários anos sem banho ao entrar no ônibus,
Eu ouvi o som da trombeta do juízo final
E não senti medo, pois sabia que estava bem
E pedi proteção ao demônio
E compus poemas de adeus
Na alvorada dominical
Quando deus percebeu que eu estava vivo
E gritou censuras à minha insanidade
Quem é são?!
- São Pedro, São Paulo
São Petersburgo -
Ainda agora ouço o som das trombetas
Para o fim e a Eternidade, são apenas uns poucos
Que verão o alvorecer de segunda

Renan Almeida, setembro de 2012.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Um homem exemplar


João dormitava no ônibus quando, bruscamente, uma senhora pediu licença para passar. Ele encolheu-se no assento e cedeu passagem, mas o chacoalhar do veículo jogou a robusta mulher sobre o corpo franzino de João. Ela não se desculpou e apressou-se para a porta, depois saltou na parada em que havia solicitado. João ocupou o assento da senhora, recostou-se à janela e cochilou novamente.
Uma fina voz infantil fez João despertar: era uma garotinha vendendo doces. Ela contou sobre a situação financeira de sua família e mostrou o que trazia consigo para vender. Os passageiros logo procuraram no fundo dos bolsos alguns centavos para ajudar a garota, João não foi exceção. Ao aproximar-se dele, a garotinha, com seus cabelos assanhados e roupas surradas, sorriu-lhe afetuosamente ao ver que ele estendia a mão com algumas moedas.
- Qual o senhor quer? – perguntou a menina. - Tem de menta, morango, acerola e maracujá...
João escolheu o doce de sua preferência e a garota agradeceu. Fez o mesmo com todos os que compraram dela. Ouviu-se abrir a porta e a garota saltar do ônibus, agradecendo ao motorista por lhe ter permitido a venda dos doces. João fitou pela janela aquele rosto tristonho, sujo, sentiu pena da garota. Imaginou sua longa jornada todos os dias, de manhã cedo até o final da tarde, por sob aquele sol escaldante, pés metidos em chinelos velhos e remendados. Nada poderia ser mais triste.
A viagem continuava, o ônibus avançava, parava em quase todos os pontos; desciam cinco, subiam dez; e João dormia tal qual uma criança, despertando a cada vez que o veículo dava uma freada brusca ou passava por uma lombada; e voltava a dormir. Recuperar o sono da noite mal dormida, eis o que tentava fazer.
O grito enfurecido de um homem, seguido de uma forte batida na porta do ônibus, despertaram João novamente: o motorista não parara onde devia. O homem desceu na parada seguinte aos berros, pronunciando o maior número de insultos possível. João não voltou a dormir, consultou o relógio e pôs-se a observar as pessoas no interior do ônibus. Ele tentava penetrar suas mentes, saber cada detalhe de suas vidas, nada poderia escapar.
A primeira pessoa que viu foi uma robusta senhora, sentada na fileira oposta, mas, diferentemente da outra que lhe esmagara dantes, essa parecia mais simpática. Viu em seus olhos a imagem de uma mulher trabalhadora, que sofria amiúde agressões do marido alcoólatra e tinha de inventar desculpas que justificassem os hematomas. Seus filhos deveriam testemunhar seus sofrimentos e com ela dividir a dor, eram a fonte de sua força.
João voltou-se para trás, um homem persignava-se segurando um terço; fixou o olhar nele e tentou decifrar sua história. Tudo se lhe revelou num instante: o homem era um batalhador, sempre honrado e honesto, aprendera a viver da maneira mais difícil, mas nunca seguira o mau caminho. Um homem exemplar.
Havia, no último banco, uma pessoa que parecia esconder-se. João observou os cabelos grisalhos e a longa barba e supôs se tratar de um filósofo, melancólico por não encontrar as respostas aos seus questionamentos. Sua tez morena revelava várias horas de exposição ao sol, provavelmente não passava muito tempo em casa. João via um homem sábio, erudito, prendado, mas incapaz de responder as questões relativas à sua existência e à complexidade do universo.
Depois de se enfadar profundamente com o que estava fazendo, João aconchegou-se novamente em seu travesseiro de vidro e já não queria ler o pensamento das pessoas, simplesmente sonhava a medida que o ônibus avançava. Suas impressões foram equivocadas afinal: a grande senhora que supôs apanhar do marido alcoólatra vivia, na verdade, uma vida solitária e improdutiva, era viúva e dependia da pensão do falecido, não tinha filhos; o homem virtuoso e honrado que imaginara, rezava pedindo proteção nos próximos roubos; e o velho homem barbudo, filósofo que nada, era um mendigo que havia entrado sem pagar e tentava não ser visto.

Renan Almeida, junho de 2012.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Fim de tarde

O sol se põe no fim de tarde melancólico,
O céu impressiona a todos com um espetáculo de cores;
Tons alaranjados, mistos de azul e amarelo,
Doces nuvens em formatos diversos.

Na Praça do Relógio,
Pombos aglomeram-se em busca de uma migalha
E o badalo das seis avisa que é hora de se recolher.
Porém, o sol parece recusar-se a ir embora;
Como se quisesse presentear-nos com um último e gracioso minuto;
Logo se tornam desertos de concreto as ruas movimentadas de outrora
E a noite cai sobre os postes que se acendem gradualmente.

Renan Almeida, junho de 2012.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Historinha da estação de trem

            De tarde, na Avenida S. José do Rego, fazia um calor infernal. Na plataforma, aguardando o trem das quatro horas, trabalhadores suados amontoavam-se num festival de odores. Os que possuíam ainda alguns trocados gastavam com o pastel de palmito frito a óleo de dois dias. Os restos de comida serviam de alimento aos camundongos, que ora circulavam livremente, ora optavam por se esconder.
Seu Joaquim era o dono da pastelaria, a única por perto. O dia estava sendo lucrativo para ele, uma fila quilométrica e desordenada, onde não se sabia distinguir começo e fim, formava-se em frente ao estabelecimento.

- Ui!, gemia de quando em quando uma senhora ao ter um dos pés pisado e, logo em seguida, disparava mais xingamentos por minuto do que uma metralhadora dispara tiros.

Às 16:15, já se ouviam reclamações. O trem havia atrasado. Um vendedor de amendoim, aproveitando-se da situação, enfiou-se no meio da multidão e começou a berrar:

- Amendoim! Ó o amendoim! É só cinquenta centavo!

         E as vendas alavancaram. Os famintos sem dinheiro o suficiente para o pastel ou sem disposição para encarar a fila, logo foram ao encontro da voz que anunciava o aperitivo barato. Transcorrido o tempo exato de cinco minutos, o trem chegava à estação, com os assentos já ocupados. A multidão precipitou-se para dentro do veículo, onde todos ficaram espremidos.

         Entretanto, nem todo mundo conseguiu entrar, pois a lotação máxima já havia sido ultrapassada. Muitos dos que ficaram para trás estavam na fila do pastel. Não havia remédio a não ser esperar o próximo trem. Aos que conseguiram embarcar apenas restava aproveitar a cômoda viagem até a estação em que desceriam.

         No interior do trem, havia uma luta pela sobrevivência. Como o ar era escasso, respirar tornava-se uma tarefa difícil. Quem não estivesse perto das janelas teria de se contentar com o cheiro de suor, que descia pelo rosto colando a fronte dos cabelos na testa.

         A viagem não era longa, mas num ambiente como aquele parecia uma eternidade. A beleza das paisagens pelas quais o comboio passava pouco era notada pelos passageiros, estressados com a viagem e preocupados com o orçamento familiar. Comeriam arroz com feijão naquele mês? Um dos dois faltaria? Perguntas e mais perguntas. Insegurança e desassossego. Muitas velhas rezavam todos os dias, manhã, tarde e noite, e nada se alterava. Teria deus esquecido daquelas pessoas?, perguntavam-se sem resposta. Porém, onde há sofrimento, há fé, onde há fé, há esperança e onde há esperança desistir não é uma opção. E assim caminha essa gente, de olhos vendados, sem saber se a estrada que trilham é segura, apenas à espera de uma melhoria no futuro. Futuro esse que talvez não altere em nada a dura realidade em que vivem. Mas a esperança prevalece.


Renan Almeida, maio de 2012.

sábado, 12 de maio de 2012

Relógio de bolso

Passos e marca-passos
Devo admitir minha vergonha

Os medos dos filhos
Misturam-se à consciência dos pais

Vejo isso e nada mais

Quero ver, comprovar
Sentir o cheiro, tocar

Quero sentir o real
Cair na real

Gelo seco,
Meus lábios estão pregados nos dentes
Sinto cheiros, suo horrores

Minha língua adormece
Ao amanhecer do dia
Bafo de gazela,
Martelo, dente de ouro

Vejo chamas no interior de um prédio
Fogo
Fofo
Fogo, queima, queima

As artérias do meu coração sobrevoam a tinta seca da casa abandonada
De paredes descascadas
E fumaça preta

E lá está ela
E cá estás tu
A procurar sentido

Vendido, minha vida
Quero um cadillac com portas pretas
Depois, avise-me com exclamação

Vi as galáxias, galáxias das galáxias
Descobri que somos um
Grande e gordo, fosco
Poeira das estrelas.

Renan Almeida, maio de 2012.

sábado, 18 de junho de 2011

O demônio da impulsividade

As folhas de papel riscadas são levadas pelo vento
E nelas, escritos todos os medos e tormentos,
O traço de uma dor pungente
É percebido diante dos rabiscos de ódio.
O homem quis livrar-se de tudo o que o torturara,
Suas idéias funestas,
Por ele mesmo ignoradas.
Mas o ardor do desejo de sangue
Fez o homem conspirar, entrar em conflito consigo,
Tentar, de alguma forma, procurar abrigo
Dentro do pouco de humanidade que restava em sua alma.
Era como se estivesse dividido em duas partes:
Uma ansiava morte, outra se mantinha paciente.
Buscava maneiras infinitas de se manter consciente,
Pensava em seus inimigos e a idéia parecia-lhe eloqüente,
E queria acabar de vez com tudo e todos que o fizeram mal.
Por um instante, sem estar mais relutante,
Deixou o impulso percorrer-lhe o corpo
E foi atrás de seu escopo.
Retalhando sua vítima com ódio incontrolável,
O homem fora impiedoso, cruel, abominável,
E terminara o serviço com um ar inexorável.

Tudo estava acabado e logo o ódio passava,
Sem mais expressar nenhum tipo de cólera,
O homem pôs-se a chorar,
Imaginando a que ponto pôde chegar,
Rasgando o rosto com lágrimas de desespero.

Do corpo deveria se livrar,
Com a culpa haveria de se conformar
E não havia mais tempo a perder.
Com tamanha dificuldade, arremessou o corpo ao rio,
Prendendo um peso para que pudesse afundar.
Aquele dia o havia mudado,
E ele sabia que teria de viver com fardo de um homem ter matado.

Renan Almeida, abril de 2011.